“Nosso Senhor Jesus Cristo corria uma vez por uma estrada, fugindo de seus perseguidores. Morria de fome e de sede, debaixo de um solão enorme. Já não aguentava mais de cansaço quando avistou um canavial. Então escondeu-se entre as suas folhas, refrescou do calor, descansou, chupou uns gomos e matou a fome. Ao retirar-se, estendeu as mãos sobre as canas e as abençoou, prometendo que delas o homem haveria de tirar boa e doce.
No outro dia, à mesma hora, o diabo saiu das fornalhas do inferno, cornos chifres e o rabo queimados, galopando pela estrada foi dar no mesmo canavial. Vendo o verde das canas entendeu de refrescar e espojar-se nas folhas. As canas, porém, atiraram-lhe pelos, começando ele a coçar-se. Furioso, cortou um gomo e começou a chupar; mas o caldo estava azedo, e caindo-lhe no goto queimou lhe a goela. O diabo então danou-se e prometeu que da cana o homem haveria de tirar uma bebida tão ardente como as caldeiras do inferno.
E é por isso que a cana dá o açúcar, por causa da bênção de Nosso Senhor, e a cachaça, por causa da maldição do diabo.”
Essa lenda, recolhida pelo historiador Alfredo Brandão, está publicada no livro “Ensaios Afro-
Brasileiros” e é citada no texto “Cachaça”, de Mário Souto Maior. Trata-se de uma das muitas histórias espalhadas pelo país sobre a origem da “mais brasileira das bebidas” e dá a dimensão de como a pinga – para ficar em uma das centenas de denominações – é popular.
Cachaça é a aguardente de cana-de-açúcar, derivada, primeiro da fermentação alcoólica do mel ou das borras do melaço, subproduto do açúcar, caldo de cana ou do mosto de caldo de cana e, depois, da destilação de um desses líquidos. A maioria dos estudiosos concorda que a palavra “cachaça” vem do castelhano “cachaza”, termo usado para designar o vinho de borra, uma bagaceira inferior.
Apesar de derivar da cana, como o rum, a cachaça é uma bebida tipicamente nacional e sua origem está diretamente ligada à instalação dos engenhos de açúcar no Brasil a partir dos primeiros anos após o descobrimento.
Em 1533, Martin Afonso de Souza construiu em São Vicente, a mais antiga vila do Brasil, três engenhos de cana-de-açúcar. Em 1540, Mem de Sá foi nomeado Governado Geral da colônia e um dos seus primeiros atos foi instalar um engenho no Recôncavo Baiano. Era o início do ciclo da cana-de-açúcar – aquele mesmo que você estudou na escola. E com o açúcar e o melaço veio a irmã mais, digamos, “nervosa”: a aguardente.
Entre as versões sobre a criação da cachaça, há o relato sobre o caldo que sobrava da produção do melaço e que, depois de fermentado, ganhava propriedades alcoólicas e era consumido pelos escravos. Com o tempo essa, beberagem foi recebendo tratamento mais elaborado e os portugueses começaram a adaptar as técnicas de produção da bagaceira para destila-la.
Em seus primórdios a aguardente brasileira era uma bebida consumida exclusivamente pelos escravos. Assim como algumas festas, a permissão para que os negros consumissem cachaça fazia parte de uma estratégia para mantê-los “apaziguados”. Há documentos de meados do século 17 que registram o pagamento de “aguoa ardente para os negros da terra”.
Com o passar dos anos, a cachaça se tornou uma bebida popular em diversas regiões do Brasil. Nas proximidades dos engenhos surgiram dezenas de destilarias e sua produção ganhou a importância de negócio. O consumo e a comercialização da bebida dentro da colônia incomodaram a Coroa, que tentou, por meio de diversas leis, proibir sua produção e consumo. Um desses atos fez com que, em 1660, mais de uma centena de senhores de engenho promovessem no Rio de Janeiro a “Revolta da Cachaça”, que culminou com a destituição do governador.
No século 18, juntamente com o tabaco, a aguardente nacional passou a ser importante moeda na negociação de escravos africanos. A cachaça também começa a se consolidar como bebida de identidade nacional. Em 1817, quando tem início a Revolução Pernambucana, a cachaça se torna um símbolo dos rebeldes enquanto beber vinho significa estar alinhado com o reino português.
A cachaça se tornou uma bebida popular, mas sempre associada à pobreza ou à falta de sofisticação. Durante a Semana de Arte de 1922, ela foi saudada como a bebida símbolo do Brasil, mas mesmo assim passaram-se décadas até que saísse dos botequins para frequentar ambientes mais sofisticados. O grande reconhecimento acontece em 2002, quando, por um decreto presidencial, é declarada um destilado de origem nacional. Hoje, o Brasil tem cerca de 40 mil produtores e é o terceiro destilado mais consumido no planeta.
E não perca: no “Dose de Prosa” desta semana ensinaremos como degustar corretamente a cachaça.